Meu pai me criou com as mãos sujas de giz. Engenheiro da sintaxe, calculava orações, reprovava as concordâncias erradas, media vírgulas no espaço adequado. Nunca chegou a pedreiro da construção verbal, embora o teria sido facilmente com sua letra feminina, acarinhando palavras e colocando nas folhas de papel em branco, sobre a mesa de jantar, todas aquelas delícias literárias que Barthes devassou em O Prazer do Texto.
Os escaninhos da minha memória afetiva guardam os bolsos de suas camisas manchadas de tinta de caneta esferográfica, geralmente da marca Parker. Aos 7 anos, ele me convocava, solene, para ouvir sua interpretação de Pedro Pedreiro, O que será (À flor da pele) e outras arquiteturas poéticas buarquianas que desafiavam a gravidade da minha tão recente existência.
Na sala, aos sábados, após o meu ritual preferido das compras com ele e mamãe na Mercearia Lusitana (que, embora todos os azulejos portugueses no casario colonial de São Luís, foi para mim a mais forte referência sentimental deixada pelos portugueses no Maranhão), costumávamos ficar juntos, ouvindo na radiola músicas de Chico Buarque ou Milton Nascimento: ele com sua cervejinha e eu embriagada daquela explicação sobre as construções poéticas das letras do sobrinho de Aurélio Buarque de Holanda. Durante a noite, aos finais de semana, a agulha Schure deslizava suavemente sobre discos de músicas francesas, intercaladas (nada caladas!) por gemidos de J’taime, Mon amour! que embalavam o namoro entre ele e minha mãe no sofá, longe dos nossos olhos já cerrados pelo sono tranquilo de uma infância feliz. Cresci com um pai que oscilava entre ser, por vezes um Nelson Rodrigues, por outras um épico Gonçalves Dias. Ou que parecia verbalizar, conservador como um capítulo do Velho Testamento, e em outras ocasiões, como um livro safado de Adelaide Carraro, com suas frases irreverentes a desarrumarem o ambiente clássico de família, conservado pela dedicação da minha mãe.
Estavam sempre lá, depois do almoço, ele na rede e mamãe na cama, ambos discutindo questões gramaticais ou corrigindo provas. Dele herdei a paixão pelas canetas e a devoção pela Última Flor do Lácio. Como não amá-la, venerá-la, inculta e bela, minha Língua Pátria? Meu pai é o professor Botão, autor de escritos como "A Oração e seus termos", estudos sobre a carnavalização na obra O Alienista, de Machado de Assis e de “Amor, elemento irônico na obra de Proust”. Por questão de dois dias, teria nascido no Dia do Professor, sacerdócio ao qual ele se dedicou, durante décadas. Meu pai, Alexandre, que basta ter sido Grande para mim. Uma imensidão de gente. O ranger de sua inseparável rede vai me acompanhar por toda a minha vida.
Que primorosa narrativa, Flavinha! é por essas e várias outras que te amo com os olhos da alma!
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