segunda-feira, 6 de julho de 2009

Bicho da seda


Costumava subir, diariamente, a Brigadeiro Luiz Antônio, em São Paulo, quando certo dia um dos meus amigos mendigos disse: “Onde vai assim tão linda?”. Nossa amizade surgiu da troca de olhares, de certos sorrisos cúmplices entre nós, que transcendiam a linguagem desnecessária dos dias rígidos, subvertendo a pressa paulistana que atropela a paisagem humana. Lembrei de um dos poetas da minha devoção, Manoel de Barros, que cita “parafusos de veludo” e “alicates cremosos”. Repeti o mantra Drummondiano: “uma flor furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”. Essas pequenezas se traduzem no tema que há tempos venho me dedicando a estudar, perceber e vivenciar: o afeto.
Este que é mais um, entre tantos de meus devaneios necessários, nasce de ternuras recentes e de uma saudade que queria ter o poder de se transmutar em texto. Escrevo pensando no olhar sereno de alguém que tem nome de homem e mulher, dono de uma ternura forte e uma virilidade meiga, José de Paula, meu avô Bezerra, de 94 anos. Ouço os risinhos musicais de minhas princesinhas Maria Clara e Luísa Valente, sinto em mim a força do amor-alicerce de Alexandre Botão e Elenice, ambos com suas letrinhas redondas, protetoras, os cuidados e carinhos que a falta da infância não me roubou, de Jane, Graça e Terezinha. Escuto a gargalhada sacana de Fufu, que nunca vou deixar silenciar. E penso naqueles que chegaram para ficar, fizeram-se maiores que o instante miúdo e não foram devorados pelas coisas desagradáveis. Saudades, ternuras sagradas que me unem ao humor de Dadá, ao xamanismo de Carlos Henrique, ao meu Lexotan de lucidez, Alice do País das Mara... cutaias, ao caso de amor de Viviane de Araújo e Carime Jadão com a Vida, que me ensinaram tanto sobre esse tema... e de tantas outros que ainda hão de passear aqui pelas linhas desse blog.
A ternura nos oferece a chance de aprender com a delicadeza dos pequenos gestos, de furtar sorrisos de estranhos, deliciar-se com olhares de seda. O afeto é fogo, diz Gil, como um queimar que desce ladeira abaixo da nossa arrogância burra, como lágrimas que invadem territórios áridos diante das conversa de Caetano, Bethânia e dona Canô, em ‘Pedrinha de Aruanda’ ou de ‘Santiago’, chamando João Moreira Salles de Joãozinho, filmes que amoleceram ainda mais meu coração de geléia. No livro A Onda que se Ergueu do Mar, Ruy Castro registrou uma frase linda de Tom Jobim: “Eu sou um aprendiz de ternuras”. Guevara revolucionou o mundo ao se enternecer com as lepras da América Latina, pedindo que se endurecessem sem perder a ternura jamais. O profeta Gentileza morreu propondo ao mundo a formação de uma consciência gentil. Nesses tempos tortos de violência pandêmica, barbáries em série, de uma modernidade de plástico descartável, quem elege um tema destes para escrever acaba sendo tachado de louco ou pueril, como Gentileza, Gandhi e como Aquele que ousou andar descalço e cabeludo falando de amor em meio a prostitutas e ladrões. Os desavisados não percebem que, diante do caótico quadro de anemia afetiva, a ternura deixa de ser tema de romances açucarados e passa a se converter na única possibilidade de libertação da nossa miséria afetiva. Conforme assinala Rolando Toro, poeta e antropólogo chileno, criador da Biodança:

"Não basta libertar o homem de sua miséria econômica.É necessário também libertá-lo de sua miséria afetiva,de sua pobreza criativa e de sua incapacidadede desfrutar o prazer de viver."




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