domingo, 17 de janeiro de 2010

VIVER É MUITO



Ao folhear uma publicação sobre Filosofia, deparei-me com o título magnífico: o Turbilhão de Existir. Devorando, compulsivamente, a biografia de Clarice Lispector, de Benjamin Moser, fui saudada na contracapa com a frase da escritora: “viver não é vivível”. O tema Vida é uma das minhas obsessões. A experiência de existir, respirar, pulsar é assunto recorrente desde os primeiros anos da infância, quando olhava extasiada para o céu estrelado e decorava de dúvidas existenciais a minha cabecinha de vento, como carinhosamente chamava a minha mãe. Não deve ser à toa que no Orkut, meu local de moradia se chama Mundo da Lua.
Costumo repetir que, no meu epitáfio, embora a crença confortadora na outra dimensão da vida, a frase a ser insculpida na lápide será: FOI. MAS CONTRARIADA! Nos momentos em que o fantasma da morte soprava em minha mente, costumava negociar com Deus mais alguns anos de vida: ainda tenho muita coisa para fazer aqui embaixo, Senhor; falta aquele projeto tal; ainda nem fiz nada...
A própria Clarice, que cunhou a sentença niiliista sobre o aspecto sombrio da existência, aconselhou: “Não se preocupe em entender, viver ultrapassa todo entendimento”. Viver, de fato, transcende todo o resto. Com todas as arengas e pedras no meio do caminho, aprender a viver bem e com equilíbrio é o maior de todos os desafios que nos são impostos nesse laboratório aqui na Terra.
Tenho me dedicado a fazer da minha vida uma experiência fascinante. Já fiz Terapia Transpessoal, conheci Biodança, interessei-me por Xamanismo, Meditação, adotei a música Maravida, de Gonzaguinha como meu hino de amor à Vida, cantei diversas vezes Gracias a La Vida, de Mercedes Sosa, viajei para alguns lugares (inclusive para os mais inóspitos, como dentro de mim mesma) e acumulei, ao longo dos generosos anos que já me foram concedidos, uma quantidade proposital de livros sobre o que relato agora. Além de Jean Yves Leloup, Pierre Weil, Leonardo Boff, Fritjop Capra e outros mestres que ensinam sobre a sacralidade da existência, descobri, recentemente em minha estante, títulos de origem exótica como um tal A Importância de Viver (!) de um chinês, Lin Yutang.
Viver, indubitavelmente, dói. A imensidão da vida é apequenada tantas vezes por nós e pelos que não aprenderam a Saber Cuidar, como sugere Boff. Lembro das várias ocasiões em que eu ouvia meu pai cantarolar na rede, imitando o vozeirão de Nelson Gonçalves, aquela seresta antiga de Sílvio Caldas, dos tempos de ouro do rádio: “Minha viiiida era um palco iluminaaaado, eu vivia vestido de douraaado, palhaço das perdidas ilusões...” Existir tem lá suas armadilhas perigosas. Ilusões, truques e perversidades nos assaltam durante a caminhada existencial. Mas a minha gratidão à possibilidade de estar viva é um alento. Quantas vezes não misturei minhas lágrimas com as águas salgadas do mar e não voltei à tona, renovada, renascida? Quantos músicas não dissolveram resquícios de feiúra no meu coração? Quantas cenas de miséria não roubaram meu egoísmo com a força de um soco no estômago? Quantas situações embaraçosas não se revelaram, anos mais tarde, fundamentais ao desenrolar de fatos surpreendentes? Quantas perdas necessárias e quantos ganhos desprezíveis compuseram o balanço dos dias e dos meses? Os sons, as gentes, as paisagens, os lugares, os sabores. Viver não é pouco. É muito.




































quinta-feira, 14 de janeiro de 2010


quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Cenas da periferia de São Luís: ação?


Em visita a São Luís, no último mês de 2009, com a habitual retórica messiânica, o presidente Lula expeliu a frase apelativa: "Eu não quero saber se o João Castelo é do PSDB, não quero saber se o outro é do PFL, não quero saber se é do PT, eu quero saber se o povo está na merda e eu quero tirar o povo da merda em que ele se encontra". Quatro décadas e meia antes, o então candidato a prefeito da capital do Maranhão, Epitácio Cafeteira, também prometia tirar a população da merda, afirmando em seus comícios que “São Luís era uma ilha cercada de bosta por todos os lados”.

Mais do que pano pra manga, a polêmica em torno da menção a excrementos em bocas públicas rendeu muito papel. Não o higiênico, mas de jornal. No entanto, a diarréia verbal sequer tem servido para adubar soluções. Há pelo menos 200 anos, a capital do Maranhão ostenta o símbolo de um passado que permanece entalado no presente: o Beco da Bosta, monumento à ausência de políticas públicas que, longe de incluir socialmente as pessoas ao acesso à rede básica de serviços, ainda utilizava a mão de obra escrava para carregar em vasilhas os dejetos de seus proprietários e jogá-los na maré. No século seguinte, pouco foi alterado na paisagem urbana. Em sua obra Maré Memória, publicada na década de 70, o poeta José Chagas denunciava a vida de quem habitava as palafitas de São Luís: “...com sua boca maldita que engole a maré mais alta, mas não traga a palafita, que fora do tempo salta...”



Em expressão genuinamente maranhense, há séculos o poder público não dá “um peido cheiroso”, no sentido de investir, de modo efetivo, nas áreas fora do eixo Renascença-Calhau, com suas plantinhas, canteiros floridos e largas avenidas, em processo de barradatijucatização, a exemplo do emergente bairro carioca. Um estudo recente, realizado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), revelou que 42,03% da população de São Luís não têm acesso a coleta de esgoto, ou seja, aproximadamente, 419 mil pessoas. Embora alguns avanços tenham sido detectados, entre 2006 e 2008, 77,33% das escolas da capital não usam água encanada e 44,04% não detém sistema de abastecimento de esgoto. Na solenidade no Maranhão, o Presidente da República e o Prefeito de São Luís assinaram convênios no valor de 18 milhões de reais destinados a obras de drenagens, canalizações, pavimentações. Despejar concreto nos bairros periféricos é parte importante na melhoria de qualidade de vida, mas medida raquítica, sem a elaboração de projetos urbanísticos conceituais e criativos, que considerem a cidade como um ecossistema e humana, por excelência, segundo a compreensão aguda do antropólogo Claude Lévi-Strauss.

Periferia no cinema - Tribuna do Gueto, um dos filmes selecionados para o DOC TV 2009 (55 minutos, TV Brasil/Empresa Brasileira de Comunicação), dirigido por Antônio Carlos Pinheiro, é uma das mais reveladoras produções audiovisuais sobre a periferia de São Luís, dos últimos tempos. Enquanto as matracas, pandeirões e tambores variados são exibidos em propagandas oficiais para fins de apropriação simbólica por parte do poder vigente, o documentário percorre um atalho para escancarar os problemas que afetam os bairros do Coroadinho, Liberdade e Vila Embratel, em abordagem protagonizada pela recepção. São os próprios moradores, fundadores dos bairros, lideranças comunitárias que opinam sobre os problemas, como a violência, o uso de drogas, educação, saúde e outros. Segundo Antônio Carlos Pinheiro, o Carlão, 27 anos, diretor e roteirista, estudante de Serviço Social da Ufma, a idéia para produzir o filme surgiu de uma indignação diante da abordagem preconceituosa feita pelos veículos de comunicação local ao referirem-se aos bairros, com freqüente presença nas editoriais de Polícia. Um dos pontos altos do documentário é o depoimento de Dona Dica, do Coroadinho, ao demonstrar a invisibilidade social de jovens envolvidos na criminalidade: “Eles acham bom aparecer na televisão, ainda que seja no Bandeira 2 (programa policial da TV) e perguntam: a senhora meu viu no Bandeira 2?”, relata o entusiasmo dos que aparecem na televisão, presos ou cometendo infrações.

A questão da Segurança Pública é um dos principais aspectos abordados pela produção, concluída em três meses, com um modesto orçamento em torno de 110 mil reais. Somente no final do ano, 62 homicídios foram registrados em São Luís, com 9 mortes na região metropolitana, apenas na virada do ano, sendo três homicídios no bairro da Liberdade. No filme, um jovem denuncia que ao conseguir uma vaga de emprego e relatar que mora na Liberdade, costuma ser, imediatamente, dispensado pelo empregador, discriminado por viver em um dos bairros com maior índice de criminalidade de São Luís. O diretor de Tribuna do Gueto argumenta que o outro lado não é mostrado pela mídia e que existem mais de 50 times de futebol na Liberdade e nenhum campo de futebol, além de figuras de destaque da Cultura Popular maranhense, como Seu Valdinar, há 30 anos compondo sambas e cantando, Seu Coxo, Apolônio Melônio, que também é destaque no filme. Engajado há 7 anos em trabalhos sociais comunitários, o cineasta ensina a lição que os governantes ainda não aprenderam: “O erro é que o Poder Público continua pensando em Segurança sem pensar em emprego, educação e qualidade de moradia. Segurança Pública para mim é também Segurança Social”.
Os bairros, citados, predominantemente, em páginas policiais só aparecem em outras editorias ou em coberturas diferentes durante o período junino ou carnavalesco. “As nossas brincadeiras não se apresentam mais para a população pobre. Agora só para ricos”, diz Carlão. Billy Wesley, coordenador de Cultura da CUFA, Central Única das Favelas, que tem o rapper MV Bill como um de seus fundadores, atuando no Maranhão desde o final de 2006, também partilha da mesma opinião: “É repugnante como eles utilizam, politicamente, os valores da cultura da periferia de São Luís. Não fazem nada para dar acessibilidade à educação, saúde, não existe estrutura, nada.”
Já que o título de única capital brasileira fundada pelos franceses não traz nenhum efeito prático na vida de quem mora nos bairros periféricos, seria aconselhável que os ocupantes de cargos públicos trabalhem para evitar a repetição do maio de 2005, na França, quando mais de quinze cidades foram paradas, durante a chamada Revolta da Periferia. Diferente de Tribuna do Gueto, de Antônio Carlos Pinheiro, o filme Ódio (La Haine, França, 1995), de Mathieu Kassovitz, mostra cenas violentas de enfrentamentos entre a polícia e os jovens da periferia de Paris.


Artigo publicado no jornal VIAS DE FATO (http://www.viasdefato.jor.br/)

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Lula em versão decepada de Os dois filhos de Francisco



Fui assistir ao filme Lula, o filho do Brasil, dirigido por Fábio Barreto - felizmente em companhias tão agradáveis que compensaram a falta de bons modos da platéia. Nada mais irritante do que ser obrigada a ouvir conversas de quem comete a heresia de escolher justamente o cinema para bater papo ou tagarelar ao celular. Ah, São Luís...


Insisto em minha modesta opinião, em meio à enxurrada de postagens, artigos e comentários que, só no universo da Internet, já alcançou a marca de 2 milhões e 600 mil citações sobre o assunto. A produção, que recebeu generosas doações em torno de 10,8 milhões de reais, de empresas com negócios umbilicalmente ligados ao Governo Federal, prima pela fórmula aprimorada com requintes, nos últimos anos, pelo Cinema Brasileiro: a força da aridez da temática nordestina, pitadas de romance, mensagens de fundo com lições de auto-ajuda e o tempero essencial da emoção.

As cenas de morte da primeira esposa, o enterro da mãe, dona Lindu, magistralmente interpretada por Glória Pires, e as frases de efeito do personagem mitificado pelo filme seguem a trilha de poeira da estrada percorrida por outras personalidades reais brasileiras que triunfaram sobre as dificuldades congênitas, a exemplo de Zezé de Camargo e Luciano. Lula, o filho do Brasil é uma versão decepada de Os dois filhos de Francisco. Nenhuma alusão depreciativa ao acidente de trabalho sofrido pelo ex-operário. Excluindo-se da análise o fenômeno da popularidade do Presidente, o Lula desidratado da produção da família Barreto já se encontra distante léguas e léguas do nordestino de Garanhuns, inchado pelas alianças com a banda podre da política brasileira. Uma biografia atípica, de torneiro mecânico a Presidente do Brasil, sob ângulos e enquadramentos da técnica cinematográfica, até dispensaria um roteiro primoroso.

Apesar da prioridade declarada ao realismo documental com heroísmo típico de ficção no argumento, das frases alteradas para imprimir cores de mocinho ao personagem principal, o filme é fiel ao perfil de um líder degradável à Ditadura Militar (foi preso no DOPS, mas não exilado). O trainee de Lula, retratado em algumas sequências de cenas já revela o Lula profissional, especialista na arte da resiliência política do Lulismo. “Trabalhador não é de direita, nem de esquerda”, “Puxei a bondade de minha mãe e a maldade do meu pai”, disse o personagem de Lula, o filho do Brasil. A apologia à obstinação é um trunfo que se alastra até na vida pessoal do jovem Luiz Inácio. Bem melhor do que as metáforas de péssimo gosto em seus discursos oficiais, ele conquista Dona Marisa com a frase: “O amor só acontece uma ou duas vezes na vida, no máximo”. Uma bela história de amor para deleite proposital de milhares de brasileiros que vivem em condições de drama. Real e não fictício.






terça-feira, 5 de janeiro de 2010

SEMENTE: SE MENTE... SEM MENTE!



“A vida tem horror à mesmice. Um amigo, cientista especialista em bambus, me emprestou um livro-arte maravilhoso sobre bambus. Aprendi que os bambus florescem. Espantei-me. Eu nunca vi um bambu florido. Bambus, pelo que eu pensava saber, se reproduzem assexuadamente: a planta mãe vai soltando brotos iguais a si mesma. Mas o livro me disse que em períodos aproximados de cem anos, uma mesma espécie de bambu floresce, no mundo inteiro. Depois da orgia sexual, da troca de gens, da ejaculação de sementes, morrem os bambus. Os novos nascerão das sementes. Não serão mais os mesmos que eram. Porque a semente é precisamente isso: a vida se recusando a ser a mesma; a vida sabendo que, para continuar viva, precisa deixar de ser o que era para vir a ser uma outra coisa. Se não houver a mistura de gens, se a planta quiser ficar sempre a mesma, ela se degenera. É preciso deixar de ser o mesmo e se transformar em outro. Vale para as plantas a sabedoria evangélica: Quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á. Quem permanecer o mesmo, morrerá. Ou se transformará numa pedra. Na procriação existe sempre um pouco de morte. Morre e transforma-te!, dizia Goethe. Somente onde há sepulturas há também ressurreições, dizia Nietzsche. Se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só. Mas se morrer dá muito fruto, dizia Jesus.”

(Texto de RUBEM ALVES, escritor, teólogo e psicanalista)



sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Primeiras páginas de 2010


Os anos se sucedem como páginas de um livro. Somos nós os autores de nossos próprios rascunhos, escritos inacabados, poemas, contos, obras-primas, folhas inteiras desperdiçadas ou rasgadas, traduzindo episódios e acontecimentos, circunscritos pelo tempo. Na dança dos encontros, ritual integrante da experiência humana, alguns relacionamentos são fortalecidos em suas raízes, alimentadas pela seiva suave do afeto, que une e nutre as conexões. São árvores frondosas e centenárias como os baobás, resistentes às tempestades, sobreviventes às intempéries e pragas de toda espécie.

Assim como os encontros inevitáveis, há os desencontros previsíveis - aqueles que não conseguiram transcender os interesses momentâneos, asfixiados por emoções purulentas, resíduos de patologias atávicas que fazem a pequenez do egoísmo pisotear a ternura, a grandeza de vivenciar o amor ou a amizade. São aqueles que faliram sem a força da transmutação, abrigando-se no efêmero. São também os encontros que fracassaram na covardia de reescrever novos capítulos, em prosa liberta das algemas de conclusões definitivas, ignorantes da imensidão de possibilidades reservadas pela Vida.
A felicidade que desejo a todos que fazem parte do meu precioso patrimônio afetivo, nesta virada de ano, costuma vestir-se de trajes simples como são os momentos de autêntica alegria. É o feliz aprendizado de abrigar-se no silêncio do próprio coração, aprendendo a calar, longe da balbúrdia da queima de fogos, que não apaga as angústias e aflições do dia seguinte. Aos meus amores amigos e amigos amados, cultivados pelo húmus do tempo, contendo a reciprocidade de carinhos, conversas sinceras, sorrisos, trocas intelectuais e afins, quero brindar à inevitabilidade do novo em 2010. Viver é dádiva por demais preciosa para ser desperdiçada. Como um vôo de asa delta, um abraço largo, sal do mar no corpo e beijos que mudam a cor dos olhos. Mais 365 dias para escrevermos a obra-prima de nossa existência. FELIZ NOVO!

Essa crônica é dedicada e inspirada em conversas recentes que tive com alguém que integra meu patrimônio afetivo, Maria Cristina Asevêdo, Juíza de Direito, mas antes disso, uma das minhas maiores referências pessoais.