À frente alguns quilômetros de distância da estética-chiclete dos anos 80, Arnaldo Antunes, Nando Reis e Sérgio Reis compuseram:
“A gente não quer só comida
A gente quer comida
Diversão e arte
A gente quer comida
Diversão e arte
...A gente quer inteiro
E não pela metade...”
E não pela metade...”
Iconoclastas, modernistas, os Titãs teceram letra seca para mencionar a farta complexividade que provoca nossa insaciável fome de ser. Somos tal qual a precisa definição de Leonardo Boff: “um projeto infinito”. Desde que as buscas não resultem em neuroses com obesidades mórbidas, não existe expressão mais legítima da nossa humanidade do que a procura. Às sucessivas buscas deve-se o estágio onde chegou o planeta. No afã dos que querem sempre mais do que o feijão-com-arroz cotidiano e dos que desejam muito além de comida, conforme o verso mutilfacetado dos compositores, não cabem migalhas. Ninguém, em pleno gozo de sua saúde emocional, quer ser 50% amado - embora toda a imprecisão sentimental, que não se adequa a medidas e percentuais.
Na perspetiva epistemológica da complexidade, tendo como um de seus representantes o francês Edgar Morin, um dos maiores intelectuais da atualidade no mundo, a soma das parte é ainda maior do que o todo. Ser inteiro, integral é não incorrer no equívoco da fragmentação, da fratura em pequenas partes de nossa subjetividade. A inteireza fornece um sentido mais amplo às necessidades miúdas, mostra que as partes amputadas resultam em dissociações de variadas espécies.
Franksteins e monstros que habitam o imaginário popular sempre desempenham papéis aterrorizantes, com a finalidade de amedrontar e perseguir. Aos nos fragmentarmos, somos inevitavelmente perseguidos pela mula-sem-cabeça de nossos atos ou atormentados, com frequência pelos lobisomens de nossas contradições, sob a maldição da mutação eterna. Na Mitologia Grega, por exemplos, mostros como a Quimera, com cabeça e corpo de leão, além de duas cabeças anexas (uma de cabra e outra de serpente) geralmente resultavam da união entre metades diferentes. No caso da Quimera, cujo termo é associado literariamente aos devaneios e ilusões, o monstro tinha a sugestiva forma de metade mulher, metade serpente.
Licença de uso dos simbolismos à parte, ninguém se torna monstro ao fragmentar-se, eventualmente. Dilemas shakespeareanos do tipo to be or not to be: that’s the question integram a lista das sinuosidades próprias da alma feminina. Porém, como certos medicamentos, o uso prolongado pode provocar danos irreversíveis. “A gente quer inteiro e não pela metade”. E, para isso, de vez em quando é necessária uma assepsia geral dentro de si, ao som de outro refrão de Arnaldo, o Antunes: “Bichos escrotos saiam dos esgotos!”
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