terça-feira, 6 de outubro de 2009

Mercedes Sosa: um hino à vida







Mercedes Sosa é parte fundamental do mosaico de minhas memórias de infância, que guardam também um Chico Buarque ainda estreante nos festivais de musica, o Milton Nascimento das Gerais, misturados aos personagens de Monteiro Lobato, Malba Tahan e tantos outros. Aquela voz rascante que saía da radiola de casa, cantando Volver a los Dezessiete se confundia ao cheiro da cerveja de papai aos sábados, às tintas de canetas esferográficas vermelhas que corrigiam provas de alunos e a um universo determinante na formação de quem eu sou.
A morte da cantora argentina, ao contrário do significado fúnebre, me trouxe de volta o furor de uma lembrança de vida, uma emocionada certeza da necessidade de repetir, incessantemente, outra de suas interpretações, Gracias a la vida, uma oração em forma de música. Agradecer à vida por ter nos dado tanto, como canta Sosa, é um modo de compreender a sacralidade da existência e reafimar a conexão com tudo aquilo que nos nutre e nos mantém vivos. Na composição de Violeta Parra, ela agradece à vida pelos ouvidos, pelos olhos, pelo coração, pelos pés cansados, pelo riso e pelo pranto, impregando de poesia o ato de existir e depõe: “Agradeço à vida por ter me dado tanto, me deu o ouvido que, com sua largura grava noite e dia, grilos e canários martelos, turbinas, latidos, chuviscos e a voz tão doce do meu bem-amado...”
Em Volver a los Dezessiete, a alquimia dos dias que opera transformações no laboratório do tempo: “Tudo muda a todo momento, qual mago condescendente nos afasta, docemente, de rancores e violências. Só o amor com sua forma nos transforma tão inocentes”.
Mercedes ficou conhecida como a voz dos sem voz, cantando em defesa dos pobres e injustiçados. Vítima das arbitrariedades da Ditadura, chegou a ser presa no palco, durante um show. A grande representante do movimento musical Nueva canción, com raízes africanas, cubanas, andinas e espanholas, cantou seu próprio legado em Solo le pido a Dios: “Só peço a Deus que a dor não me seja indiferente, que a ressequida morte não me encontre, vazia e só sem ter feito o suficiente” - manifesto dos que se recusam à mera satisfação apequenada de seus desejos pessoais e crêem que a Vida há sempre de se impor de maneira maior, na grandiosidade de um projeto de felicidade coletiva.

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