terça-feira, 30 de agosto de 2011

Breves confissões adocicadas


A poesia distraída de certas canções deságuam sensações de céu. Um dos meus versos musicais preferidos é aquele de Chico Buarque, em Lola: “Gosto de ver você chegar, arrancando páginas  dentro de mim”. 
Um sorriso despertado pela cumplicidade de certas lembranças agradáveis, sedutoras, surge quase pedindo sua conversão em escrita. Contemplo as primeiras luzes que riscam a paisagem de concreto, em janelas que exalam vidas acesas, impondo sua presença, em meio aos vestígios do azul de um resto de dia. Entardece lentamente, lenta a mente. Persianas entreabertas deixam escapar aromas do início de noite. Um rio de águas mansas, mornas passeia na alma, antes insaciável, em estado de permanente torrente, jorrando em desperdício absoluto. O singelo, a delicadeza, a alegria despretensiosa tomam assento no lugar abandonado, após anos de ardor, de ânsias juvenis, de frenesis imbecis.
A calmaria é brisa suave no rosto, beijo gostoso que se delicia desde a espera. A mansidão é música feita de punhos de rede. Hermeto Pascoal de minhas emoções reinventadas. Fluir, mergulhar, no baile do ritmo da harmonia soberana. Transformar em arte cada parte. Vik Muniz de mim mesma, reciclando intenções e emoções. Do meu lixo interior ao papel da poesia. Viver certos dias que se parecem com uma caminhada à beira-mar, pressa que desaparece, maré cheia, maré vazante, ciclos naturais. Vida que não impede o sol de nascer, a chuva de cair, o mar de encher ou vazar. A mestra natureza, ao ensinar a receber a semente, fazer crescer, florescer, amadurecer, num tempo, nem atrás, nem adiante, mãe de todos os acontecimentos.
Acordar, a cada dia, como quem nasce novamente. O interior em pluma, ao abrigo das cobertas da serenidade. Nem os ruídos urbanos, nem a despedida do vento de agosto serão capazes de desafinar a ternura, armadura de lençol. O cheiro de maresia está no ar.

3 comentários:

  1. Flavinha, fico aqui pensando: como é que se vê tanta pobreza por aí transformada em genialidade! Enquanto o que efetivamente reluz fica confinado ao anonimato. Eu te leio e tenho a sensação de que as tuas palavras me elevam a um plano superior, onde só habitam o belo e o sensível. Vc escreve lindamente, porque consegue revestir o verbo com o melhor da poesia. "A calmaria é brisa suave no rosto, beijo gostoso que se delicia desde a espera. A mansidão é música feita de punhos de rede". Felizes os que conseguem imprimir leveza às palavras. Seu texto é apenas INTELIGENTE!

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  2. Nonato, meu Reis... o carinho de tuas palavras nas minhas chega a me ruborizar, pois, como a tua aguda sensibilidade percebe, incluo-me no rol dos escribas anônimos, misantropos, ermitães da palavra. Como uma das minhas grandes referênias no Jornalismo destas plagas e conhecedor profundo do ofício de escrever, quase me fazes, com teus comentários generosos, ter o impulso definitivo de realizar minha exposição pública num antigo projeto de um livro de crônicas. Quem sabe este ano não sai do forno? Com a tua imprescinível presença, eu me sentiria mais segura a navegar por tais mares bravios! Bjo carinhoso e muitíssimo obrigada.

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  3. Eu adoraria fazer parte de qualquer coisa com você, Flavinha. Ainda que fosse apenas dizer, "nossa, que obra prima!".

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