quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Cenas da periferia de São Luís: ação?


Em visita a São Luís, no último mês de 2009, com a habitual retórica messiânica, o presidente Lula expeliu a frase apelativa: "Eu não quero saber se o João Castelo é do PSDB, não quero saber se o outro é do PFL, não quero saber se é do PT, eu quero saber se o povo está na merda e eu quero tirar o povo da merda em que ele se encontra". Quatro décadas e meia antes, o então candidato a prefeito da capital do Maranhão, Epitácio Cafeteira, também prometia tirar a população da merda, afirmando em seus comícios que “São Luís era uma ilha cercada de bosta por todos os lados”.

Mais do que pano pra manga, a polêmica em torno da menção a excrementos em bocas públicas rendeu muito papel. Não o higiênico, mas de jornal. No entanto, a diarréia verbal sequer tem servido para adubar soluções. Há pelo menos 200 anos, a capital do Maranhão ostenta o símbolo de um passado que permanece entalado no presente: o Beco da Bosta, monumento à ausência de políticas públicas que, longe de incluir socialmente as pessoas ao acesso à rede básica de serviços, ainda utilizava a mão de obra escrava para carregar em vasilhas os dejetos de seus proprietários e jogá-los na maré. No século seguinte, pouco foi alterado na paisagem urbana. Em sua obra Maré Memória, publicada na década de 70, o poeta José Chagas denunciava a vida de quem habitava as palafitas de São Luís: “...com sua boca maldita que engole a maré mais alta, mas não traga a palafita, que fora do tempo salta...”



Em expressão genuinamente maranhense, há séculos o poder público não dá “um peido cheiroso”, no sentido de investir, de modo efetivo, nas áreas fora do eixo Renascença-Calhau, com suas plantinhas, canteiros floridos e largas avenidas, em processo de barradatijucatização, a exemplo do emergente bairro carioca. Um estudo recente, realizado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), revelou que 42,03% da população de São Luís não têm acesso a coleta de esgoto, ou seja, aproximadamente, 419 mil pessoas. Embora alguns avanços tenham sido detectados, entre 2006 e 2008, 77,33% das escolas da capital não usam água encanada e 44,04% não detém sistema de abastecimento de esgoto. Na solenidade no Maranhão, o Presidente da República e o Prefeito de São Luís assinaram convênios no valor de 18 milhões de reais destinados a obras de drenagens, canalizações, pavimentações. Despejar concreto nos bairros periféricos é parte importante na melhoria de qualidade de vida, mas medida raquítica, sem a elaboração de projetos urbanísticos conceituais e criativos, que considerem a cidade como um ecossistema e humana, por excelência, segundo a compreensão aguda do antropólogo Claude Lévi-Strauss.

Periferia no cinema - Tribuna do Gueto, um dos filmes selecionados para o DOC TV 2009 (55 minutos, TV Brasil/Empresa Brasileira de Comunicação), dirigido por Antônio Carlos Pinheiro, é uma das mais reveladoras produções audiovisuais sobre a periferia de São Luís, dos últimos tempos. Enquanto as matracas, pandeirões e tambores variados são exibidos em propagandas oficiais para fins de apropriação simbólica por parte do poder vigente, o documentário percorre um atalho para escancarar os problemas que afetam os bairros do Coroadinho, Liberdade e Vila Embratel, em abordagem protagonizada pela recepção. São os próprios moradores, fundadores dos bairros, lideranças comunitárias que opinam sobre os problemas, como a violência, o uso de drogas, educação, saúde e outros. Segundo Antônio Carlos Pinheiro, o Carlão, 27 anos, diretor e roteirista, estudante de Serviço Social da Ufma, a idéia para produzir o filme surgiu de uma indignação diante da abordagem preconceituosa feita pelos veículos de comunicação local ao referirem-se aos bairros, com freqüente presença nas editoriais de Polícia. Um dos pontos altos do documentário é o depoimento de Dona Dica, do Coroadinho, ao demonstrar a invisibilidade social de jovens envolvidos na criminalidade: “Eles acham bom aparecer na televisão, ainda que seja no Bandeira 2 (programa policial da TV) e perguntam: a senhora meu viu no Bandeira 2?”, relata o entusiasmo dos que aparecem na televisão, presos ou cometendo infrações.

A questão da Segurança Pública é um dos principais aspectos abordados pela produção, concluída em três meses, com um modesto orçamento em torno de 110 mil reais. Somente no final do ano, 62 homicídios foram registrados em São Luís, com 9 mortes na região metropolitana, apenas na virada do ano, sendo três homicídios no bairro da Liberdade. No filme, um jovem denuncia que ao conseguir uma vaga de emprego e relatar que mora na Liberdade, costuma ser, imediatamente, dispensado pelo empregador, discriminado por viver em um dos bairros com maior índice de criminalidade de São Luís. O diretor de Tribuna do Gueto argumenta que o outro lado não é mostrado pela mídia e que existem mais de 50 times de futebol na Liberdade e nenhum campo de futebol, além de figuras de destaque da Cultura Popular maranhense, como Seu Valdinar, há 30 anos compondo sambas e cantando, Seu Coxo, Apolônio Melônio, que também é destaque no filme. Engajado há 7 anos em trabalhos sociais comunitários, o cineasta ensina a lição que os governantes ainda não aprenderam: “O erro é que o Poder Público continua pensando em Segurança sem pensar em emprego, educação e qualidade de moradia. Segurança Pública para mim é também Segurança Social”.
Os bairros, citados, predominantemente, em páginas policiais só aparecem em outras editorias ou em coberturas diferentes durante o período junino ou carnavalesco. “As nossas brincadeiras não se apresentam mais para a população pobre. Agora só para ricos”, diz Carlão. Billy Wesley, coordenador de Cultura da CUFA, Central Única das Favelas, que tem o rapper MV Bill como um de seus fundadores, atuando no Maranhão desde o final de 2006, também partilha da mesma opinião: “É repugnante como eles utilizam, politicamente, os valores da cultura da periferia de São Luís. Não fazem nada para dar acessibilidade à educação, saúde, não existe estrutura, nada.”
Já que o título de única capital brasileira fundada pelos franceses não traz nenhum efeito prático na vida de quem mora nos bairros periféricos, seria aconselhável que os ocupantes de cargos públicos trabalhem para evitar a repetição do maio de 2005, na França, quando mais de quinze cidades foram paradas, durante a chamada Revolta da Periferia. Diferente de Tribuna do Gueto, de Antônio Carlos Pinheiro, o filme Ódio (La Haine, França, 1995), de Mathieu Kassovitz, mostra cenas violentas de enfrentamentos entre a polícia e os jovens da periferia de Paris.


Artigo publicado no jornal VIAS DE FATO (http://www.viasdefato.jor.br/)

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