Ainda sob efeito de uma pressão que resolveu brincar de alpinista, aproveito as tonturas físicas para elaborações existenciais em torno das sucessivas voltas que damos em torno das velhas e recorrentes questões subjetivas. Tratar destas questiúnculas, em meio à enxurrada de informações de maior relevo para os que cultuam o exterior, é uma maneira solitária de descer um degrau a mais nos porões da minha alma. Desprovida do talento de uma sábia milenar, com quem troco textos e dicas literários, ouso navegar calmamente no meio da imensidão de um oceano revolto de palavras.
Em minha farmácia de frases, absorvo em doses homeopáticas a afirmação do orador e político grego Demóstenes (384 a 322 a.c.): “é extremamente fácil enganar a si mesmo, pois geralmente o homem acredita naquilo que deseja”. Os que padecem de profundas ulcerações emocionais, inquietações atávicas, intensidades dos quereres, das buscas desenfreadas e de outras enfermidades do gênero, desconhecem o quanto é fácil enganar a si mesmo. A sinuosidade da alma feminina, dada a teceduras sentimentais, é presa fácil das alegorias que se travestem de pequenas alegrias, das miragens em sofisticadas roupagens, dos simulacros de visibilidade estéril. As lacunas que surgem no decorrer da caminhada vão revestindo e despindo as procuras, oscilando ora em encontros, ora em desencontros. Movida pela frequente busca renovadora, pela resignificação transformadora, adoto a formulação lacaniana de que o desejo é sempre o desejo de um outro desejo.
O conflito entre o ardor interior de quem se alimenta de buscas frenéticas e a mania feminina de confeccionar sentimentalidades é assunto para muitas horas de divã. No entanto, reflexiono em torno da quase em extinção característica das tecelãs que ainda acreditam na possibilidade de realização da grandeza de um projeto afetivo. Muitas usaram do recurso ao qual me refiro. Sherazade, arquétipo da estranha relação entre amor e morte, desenrola seu novelo de histórias para o Sultão, escapa de ser decapitada e vive sob a proteção de uma sedução que dura mil e uma noites. Penélope, para aguardar Ulisses (ou Odisseu) que guerreava em altos mares utilizou um artifício parecido. Para não desagradar o pai, que sugeriu que ela se casasse novamente, resolveu aceitar a corte dos pretendentes com uma condição: casaria somente após terminar de tecer uma colcha. Trabalhava de dia e desfazia a costura de noite para que as vestes nunca ficassem prontas. Ulisses regressou à sua Ítaca natal 20 anos mais tarde.
O mito de Ariadne, porém, é o mais intrigante de todos. Uma metáfora geralmente usada para descrever a solução de um problema. Filha do rei Minos, se apaixona por Teseu, pede a Dédalo, arquiteto do palácio onde viva o Minotauro a planta do local. Após conhecer o lugar, dá um novelo a Teseu, recomendando que o desenrolasse a medida que ele entrasse no labirinto para encontrar a saída. Teseu usou essa estratégia: matou o Minotauro e, com a ajuda do fio de Ariadne, encontrou o caminho de volta. Retornando a Atenas levou consigo a princesa. Mas, depois de uma noite de amor, deixou-a na ilha de Naxos e ela nunca mais viu Teseu. Belíssimo roteiro de drama e lição para quem, ao desenovelar ou dedicar tempo precioso à arte de tecer, surpreende-se com o final.
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