quinta-feira, 23 de maio de 2013

Palavrar




Sim. Já me posicionei em frente ao teclado do computador, como se estivesse diante de um piano, com a pretensa e solene missão de compor melodias elevadas e supostas obras-primas do gênero. E também já percebi no ofício de escrever as mesmas exigências e habilidades necessárias a quem trabalha com uma enxada na lavoura. Não foi por acaso que a expressão “da lavra do autor” coube tão bem nas descrições de obras literárias. Ser compositor e, ao mesmo tempo, lavrador, é a síntese de quem carrega consigo a sina de escrever para viver. É preciso conciliar delicadeza e força, elementos vitais presentes tanto nas composições clássicas quanto na atividade de lavrar a terra. O clima, o solo e certos adubos também ajudam. É preciso paciência e dedicação diária. A escrita - assim como as frutas e verduras - que amadurece antes do tempo certo ou sob efeito artificial de certos fertilizantes, não tem sabor.

Eu escolhi para a minha vida esse caminho de palavras pedregosas, de pa...larvas que se arrastam até transmutarem-se em borbo...letras. Estou agora diante de mais uma peleja com as palavras, em busca de persuadi-las, enlaça-las como diria o poeta maior. No intervalo deste trabalho, descanso carregando mais palavras. Machado de Assis já dizia: “Essa sarna de escrever, quando pega aos 50 anos, não despega mais”. Mas desde os 8 anos eu lembro de já cometer versos açucarados para minha mãe. Aos 18, decidi que ganharia o pão de cada dia às custas das palavras surradas do labor jornalístico. O que será de mim aos 50 anos? Até lá, já terei saído da gaveta e publicado meu livro?

Penso nos meus poetas e romancistas brasileiros preferidos, funcionários públicos que também dublavam a rotina dos textos engravatados de suas repartições com escritas soltas, livres, prazerosas e geniais. Não deve haver, na Literatura Universal, escritor que promova o consenso definitivo entre uma narração compenetrada e deslavadamente irônica, como o Bruxo do Cosme Velho. Ninguém como Machado de Assis jamais descreveu, com tanta sutileza, tanto cinismo, as razões funcionalistas para a escolha de uma mulher feia, destas que não atrapalham a dedicação do sujeito ao ofício:   

"Simão Bacamarte explicou-lhe que D. Evarista reunia condições fisiológicas e anatômicas de primeira ordem, digeria com facilidade, dormia regularmente, tinha bom pulso, e excelente vista; estava assim apta para dar-lhe filhos robustos, sãos e inteligentes. Se além dessas prendas,  - únicas dignas da preocupação de um sábio,  -  D. Evarista era mal composta de feições, longe de lastimá-lo, agradecia-o a Deus, porquanto não corria o risco de preterir os interesses da ciência na contemplação exclusiva, miúda e vulgar da consorte". (O Alienista)

Eis o estilo definitivo, desprovido de adiposidades semânticas e penduricalhos linguísticos. Diante destes mitos das Letras, é preciso respeitar o ofício de escrever. É necessário perseguir a boa forma física das palavras e evitar que o texto se transforme numa "piriguete" enfeitada, vestindo roupas brilhantes e banalizando a elegância de narrar ou opinar. E já que o tema pede, Graciliano Ramos aconselha:

"Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer."


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