segunda-feira, 31 de maio de 2010

Os dentes cariados da alegria


Cantor e compositor de forte presença na década de 70, Sérgio Sampaio embala o final de domingo/início de segunda com um clássico regravado por Zeca Baleiro:


...o triste nisso tudo é tudo isso, quer dizer, tirando nada, só me resta o compromisso com os dentes cariados da alegria, com o desgosto e agonia da manada dos normais...”

 

A poética contundente de Sampaio é um espelho na cara maquiada da rotina, com seus falsetes de felicidades, seus truques e artimanhas para preencher nossos vazios cotidianos, como se fosse possível a fabricação de Botox para a alma ou Viagra para a melancolia dos dias mais acabrunhados. Engolir a seco o tédio como remédio é quase uma heresia para quem vive num “país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza”, bom de bola, com um presidente bom de boca, enfim, numa nação que há 40 anos faz apologia carnavalesca de suas belezas e alegrias.

Não, definitivamente, aqui não vingaria nenhum Dostoiévski! Enfrentamos, menos ainda, problemas como uma expectativa de vida de 43 anos, desnutrição em torno de 70%, como o Afeganistão, quando, entre 2008 e 2009, 80 mulheres tentaram suicídio, ateando fogo em si mesmas. O Brasil é como a descrição da ex-ministra Dilma Rousseff, feita por Danuza Leão, ontem na Folha de São Paulo: “A candidata está vivendo uma adolescência tardia, mas vai ter que resolver essa crise de identidade e decidir, afinal, quem é Dilma Rousseff.” Estamos em plena ebulição dos hormônios do crescimento econômico, ainda cometendo imbecilidades típicas da idade.

O texto está cheio de rugas e enfadado. Perdão, leitores. Resta-nos o consolo de Veríssimo, o pai, em Olhai os Lírios dos Campos: o de que a tal felicidade (palavra que parece estar sentada em um trono) “é a certeza de que nossa vida não está se passando inutilmente”.





sexta-feira, 28 de maio de 2010

Exposição de Márcio Vasconcelos

domingo, 23 de maio de 2010

Peritoró, a rodoviária e o tempo



 
Rodoviárias, aeroportos sempre me provocaram as mais familiares sensações de estranheza. Invade agora esse diário de bordo a esdrúxula figura de Quasímodo - personagem da obra O Concunda de Notre Dame, de Victor Hugo, um livro que habitava a estante da casa de meus pais, vestido em uma solene capa dura, azul com letras douradas, que remexia minha imaginação adolescente.
Sempre fui fascinada por Quasimodo, que nasceu com uma notável deformação física, uma enorme verruga cobrindo seu olho esquerdo e a grande corcunda que dá nome à obra. Abandonado ainda criança, Quasímodo foi adotado por um arcebispo da Igreja, que o designou para ser sineiro da Catedral de Notre-Dame de Paris. Devido ao alto som dos sinos da catedral, acaba surdo.

Quasímodo com suas badaladas no sino é uma das mais geniais metáforas literárias sobre o tempo. Os sinos que dobram. As horas que passam. A Catedral de Notre Dame que, erguida, parece desafiar os séculos. Quasímodo me faz lembrar Peritoró (a 222 Km de São Luís), um lugarejo encravado no meio do Maranhão, cuja maior atração é uma rodoviária. Ao viajar a trabalho, meses atrás, voltei a Peritoró. Com a poeira da solidão dos viajantes em mim, vi cenas de um filme: o tempo e a rodoviária de Peritoró. A transitoriedade expressa no vai e vem dos ônibus, que chegavam e saíam, a todo instante. A feiúra de Quasímodo é Peritoró, vítíma da política corcunda que transformou o gigante Maranhão em um Nelson Ned do desenvolvimento. As fotos feitas por mim para esse Diário de Bordo, mostram a busca fracassada de um tempo perdido em Peritoró. Do Diário de Bordo chego ao bardo mor, Fernando Pessoa, que dizia: “para viajar, basta existir”.











domingo, 16 de maio de 2010

Bilhete fraternal, talvez útil


Minha prezada Maísa:


Sabe você com que cores se costuma pintar os maus momentos e as aflições alheias. Ontem, por exemplo, disseram-me, na rua, que você, num só desespero, além de cortar os pulsos, abrira o gás do banheiro e ingerira uma dose violentíssima de certos comprimidos tóxicos. Era a notícia que corria em Copacabana, depois das seis da tarde. Mais tarde, nas boates, todos diziam que o seu estado era desesperador, aguardando-se o desenlace para cada momento.

Comentei com amigos o desperdício dos suicídios e, no seu caso especial, o absurdo de uma jovem tão bonita, tão artista, tão cheia de êxitos, tender, constantemente, para a desistência do bem essencial a todos os bens, que é a vida. Hoje, graças a Deus, os noticiários da imprensa contaram a história direito, explicando que você apenas tomara um pileque maior e alguns comprimidos além de Miltown.

Contra pileques, não tenho nada a declarar. Também os tomo, e só Cristo sabe com que desgosto lamento os erros a que eles me levam. Mas no beber há um mistério, uma sabedoria e, além disso, um certo recolhimento, que nos leva sempre aos copos, com independência e estado de graça.

Não fosse a ameaça futura de ter um fígado transformado em pâte-maison e não pesassem outras ameaças sobre os devotados do álcool, os sábios e doutores aconselhariam que a humanidade bebesse o mais possível – isto, na constatação de não nos ter o Criador concedido nascer bêbados, o que seria, além de nobre, muito mais barato.

Mas, minha prezada Maísa, o que me leva a este bilhete não é aconselhá-la à perseverança do scotch e seus substitutivos. Queria conversar sobre a morte, dentro da verdade irrefutável de que a vida, mesmo quando não chega a ser uma delícia, é uma fascinante experiência de luta e coragem, bela não só nos momentos de intensa felicidade, como, e mais ainda, nos transes dolorosos, de que saímos mais livres e fortes. Não quero dizer com isso que sofrer seja bom. Boa é a nossa convicção de sobrevivência a todas as injustiças que nos fazem à carne e à alma.

O suicídio contém uma desforra, e este é o seu lado fascinante. Mas o suicídio contém a morte, e este é o seu defeito irreparável. Nunca morrer hoje, quando se pode morrer amanhã... ou daqui a cem anos. Há muito o que ver e sentir, há muito o que amar! Em mim e em meus semelhantes mais intranqüilos haverá, um dia, aquela manhã clara e azul, e, com os olhos da alma sossegada, veremos toda a beleza da rosa, toda a luz do lago duro e prisioneiro, o sopro da manhã cheia de pássaros, o convite do amor no ser que passa.

Quantas vezes estive cansado, infeliz da minha completa impossibilidade, cativo da hora improtelável, faltado de todo o bem-querer humano, faltoso a todos os meus compromissos e, mesmo assim, estive certo dessa manhã que nos aguarda a todos. Há uma série de acontecimentos recentes em minha vida, que só por eles jamais cometeria a ingratidão de me matar. Poderia enumerar alguns: o caminho de Versalhes, a descida do Tejo, a estrada de Teresópolis, a noite que acabo de dormir, pesadamente. Em tudo isto quanto apego a esta minha vida sem método, por este destino sem porto de chegada, pelo meu coração, que só deseja o acaso dos homens e das coisas! Que incontida necessidade de confiar! Que lúcida noção de todas as minhas falhas... E, mesmo assim, viver! Ninguém recebeu o conselho dos mortos. Por isso, ninguém se deve matar.



Minha jovem amiga, abra uma janela de sua casa - a que dá para o mar ou para a montanha. Procure o mundo e dê-se por perdida. Viva, sem a nervosia de procurar-se a si mesma, porque cada um de nós é um perdido, um ilustre perdido na humanidade vária e numerosa. Viva, que no fim dá certo. É o seu amigo, A.M.

O AUTOR
 
 
 
Um dos mais interessantes cronistas brasileiros, dos glamourosos anos 50, Antônio Maria - também jornalista, radialista, compositor - é autor da música Ninguém me Ama. Para alguns, sabia fazer aquilo que nenhum de seus contemporâneos fazia melhor, inebriar de charme uma conversa. Mulato e gordo, dizia: "preciso de duas horas de papo para que as mulheres esqueçam a minha cara". A carta acima, escrita em 1958, à cantora Maísa, é dos mais belos e singelos textos de louvação à Vida.

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Piada eleitoral sem graça: o preço pago por uma jornalista



A história registra que, na França do século XVIII, quando o Duque de Orleans vendeu metade dos cavalos das estrebarias reais, o jovem François Marie Arouet, o Voltaire, comentou que teria sido mais sensato desfazer-se de metade dos asnos que enchiam a corte real.

Depois de dois anos, exercendo o cargo de Secretária de Comunicação do Governo do Maranhão, não me tornei fazendeira, nem dona de cavalos de raças: preferi combater a asnice, submetendo-me a uma seleção para pós-graduação na USP, Universidade de São Paulo. Sou jornalista profissional, nunca exerci outra atividade em minha vida. Assim como Voltaire, após o comentário sobre o Duque de Orleans, passei a ser culpada por tudo de ruim que acontecia no reino. De Bezerra no sobrenome, passei a Boi de Piranha, embora, paradoxalmente, tenham me atribuído adjetivos mais próximos de uma feroz predadora que atacava os pobres indefesos veículos de comunicação do Estado, obrigando-os a criticar a família Sarney. Fui chamada de mensaleira, acusada de responsável pela desconstrução da imagem da então senadora Roseana Sarney, quase um gênio do mal, uma espécie de Joseph Gobbels do Governo José Reinaldo Tavares. Houve um jornalista que chegou a pedir minha prisão, com base em pedaços de papel sem nenhuma legitimidade - o mesmo, por sinal, que mandava recados me intimidando a enviar contratos publicitários para seu jornal.

Fui vítima de uma farsa montada, com documentos adulterados, não oficiais, misturados a fotos com exposição pública de minha vida pessoal, inclusive de uma de minhas sobrinhas, à época com apenas 3 anos de idade, exibida nas páginas de um jornaleco chamado Veja Agora, em uma escandalosa infração do Estatuto da Criança e do Adolescente. O tal CD, contendo supostos arquivos com textos atribuídos a mim, não por acaso chegou a constar no rol de denúncias apresentadas ao STF para a cassação do ex-governador Jackson Lago. Virei assunto nacional, sendo criticada até pelo portal Comunique-se. Somente em 2008, a mais respeitada revista semanal brasileira, a Carta Capital, no artigo, Oligarquia resiste, publicado em 20/12/2008, reconhece, por intermédio do jornalista Mauricio Dias: “Há um argumento na acusação que é pura fantasia: o uso indevido dos meios de comunicação para favorecer Lago. Só que 95% da imprensa maranhense está sob controle do Sistema Mirante, pertencente ao clã Sarney. O argumento, por absurdo, nem foi encampado pela Justiça.”

Agora, o assunto da vez são os gastos com verbas publicitárias, tanto do Governo Roseana Sarney (44 milhões em um ano), quanto do Governo Jackson Lago (cerca de 21 milhões em 43 dias). Nenhuma citação aos recursos do período em que respondi pela Comunicação do Governo José Reinaldo, pelo simples fato de que os processos de pagamento, dos quais fui a ordenadora de despesa, referem-se a verbas inferiores aos citados governos - recursos que foram democratizados e pagos a dezenas de pequenas emissoras de rádio e TV do interior do Estado, sem que a maior parte deles fosse drenados a apenas um Sistema de Comunicação. Recentemente, e de forma sorrateira, ventríloquos de certos políticos ainda estiveram debruçados sobre os processos de pagamento, dos quais foi a ordenadora de despesa. Informo aos interessados que, em dois anos recebemos prêmios, como a medalha da campanha Eu & Você na Luta contra a Aids, na categoria Produtos e Serviços do Prêmio Colunistas Norte e Nordeste 2005 e outra na categoria Mídia Exterior, com um outdoor feito com máscaras de fofão. Recebemos ainda um reconhecimento do TCU, Tribunal de Contas da União, que considerou a comunicação como fundamental para que o Maranhão saísse da situação de alto risco em febre aftosa. Produzimos o primeiro programa de rádio popular do Governo do Maranhão, o Marrapá, que incomodava os mais oficiosos, tornado-se um case de sucesso entre as classe B e C. Trabalhamos muito e convertemos a verba pública destinada à comunicação em informações de interesse da população. Indubitavelmente, sem informação não há cidadania. O Maranhão há de chegar à época em que Comunicação Pública signifique, exclusivamente, ressonância popular e via de acesso aos serviços de Saúde, Educação, Emprego e Renda, em suma, desenvolvimento.

Continuo sobrevivendo da minha profissão, escrevendo matérias, produzindo releases, gerenciando processos de comunicação, com a cabeça erguida e a dignidade que aprendi com os professores Elenice e Alexandre Botão, pais e mestres em minha existência.




Aviso aos navegantes: a proposta do blog sempre esteve voltada aos temas de literatura, cinema, música, emoções baratas e afins. Peço desculpas aos leitores por abordar um assunto indigesto, mas que, finalmente, já pode ser digerido com mais facilidade.





 






quarta-feira, 28 de abril de 2010

Cartunista Robert Crumb é presença confirmada na FLIP 2010


Símbolo da contracultura nos anos 60, Robert Crumb é o décimo autor a confirmar presença na Festa Literária Internacional de Paraty. Com um humor sombrio, como definiu o crítico literário Harold Bloom, Crumb lançou, no fim de 2009, Gênesis – uma versão em quadrinhos do mais antigo livro da Bíblia. Para lançar a obra de 210 páginas, o cartunista se dedicou, por mais de quatros anos, aos estudos religiosos – desde as mais diversas leituras sobre o texto bíblico à pesquisa de registros fotográficos da Terra Santa.
Agnóstico declarado, antes de adaptar o livro do Gênesis para os quadrinhos, Crumb já havia transposto obras de Franz Kafka, Charles Bukowski e Philip K. Dick. Entre os títulos publicados no Brasil, Kafka de Crumb, Fritz, the Cat, Mr. Natural, Mr. Natural vai para o hospício e Minha Vida. Nascido na Filadélfia, Estados Unidos, em 1943, Crumb vendeu quadrinhos com a mulher, na época grávida, pelas ruas de São Francisco, colaborou com o roteirista Harvey Pekar nos anos 70 e foi tema do documentário Crumb, lançado em 1994 pelo diretor Terry Zwigoff. Em parceria com a esposa Aline Kominsky, produziu quadrinhos autobiográficos publicados pela New Yorker e reproduzidos no Brasil pela revista Piauí. Vive com a família no sul da França desde 1991.

Texto do Blog da Flip, Festa Internacional de Paraty

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Clássicos, dramas e a velha comédia humana


O domingo de chuva me trouxe um sofá quente e um filme requentado: a Igualdade é Branca, da trilogia do diretor Krzysztof Kieslowski. Nele, o personagem polonês Karol, após ser humilhado pela ex-esposa, tece uma ardilosa trama e, mesmo amando-a loucamente, se vinga, impiedosamente, da bela mulher. A película me remeteu às irritantes considerações inconclusivas sobre as tais Sem-razões do Amor, como no poema drummondiano: “eu te amo porque não te amo. Bastante ou demais a mim.”

A cena final das lágrimas do homem cruelmente apaixonado, que observa através de binóculos a insanidade da moça consumida por um amor irrealizado pela tardia descoberta, é comovente. Um chute na estética “mocinha” de Hollywood e em seu clássico golpe do Happy End, do qual todos fomos vítimas um dia e que, vez por outra, voltamos a insistir em protagonizar novamente.

Mesmo após 30 anos de estudos sobre mecanismos psíquicos, Freud declarava não ter desvendado a pergunta: O que quer uma mulher? O filme também me fez questionar: em 5 milhões de anos, o que a civilização humana quer do amor?

Li, no início deste ano, uma entrevista com a tetraneta de Dom Pedro II, Paola de Orleans e Bragança que respondeu à pergunta sobre quem se classificaria como “príncipe encantado”. Para ela, aquele que tivesse nobreza relacionada ao caráter. Mas nobreza nem sempre funciona como pré-requisito para as paixões avassaladoras, aquelas incrustadas nos herdeiros do trágico modelo shakespeareano. “Hoje as pessoas procuram mais companhias do que um companheiro”, diz com realismo a descendente da Família Real Portuguesa.

Triste do amor, tão enaltecido pelos clássicos do cinema e da literatura, reduzido em nossos tempos de 140 caracteres do Twitter, a um apêndice do cotidiano. Talvez por isso tantos prefiram alimentar-se das emoções desenfreadas, contidas nos amores contrariados. Sábio foi o gênio Machado de Assis que, com o  sarcasmo habitual, cunhou a frase: “O amor contrariado, quando não leva a um desdém sublime da parte do coração, leva à tragédia ou à asneira."