Ao desfrutar do prazer indescritível de ler a historinha de
um reizinho mandão para Luísa, lembrei da minha infância cercada de Monteiro
Lobato, Malba Tahan, Casimiro de Abreu e outros escritores tão presentes nos
escaninhos da minha memória. As lendas orientais, as artimanhas de Emília do
Sítio do Pica Pau Amarelo entravam pelo meu ouvido, passeavam pela minha mente
e faziam festa dentro de mim. Ao som da voz de Noca, a nossa querida empregada
doméstica, com seu hálito rouco de cigarro, eu ouvia, maravilhada, palavras
aladas que se enroscavam umas nas outras, até formarem um mosaico mágico de
personagens e enredos, invadindo minha cabecinha de sonhos e fantasias.
Desprovida de maiores recursos intelectuais, Noca foi a minha
mestra na arte de ouvir e ler histórias. A lembrança dela ainda permanece viva,
acompanhando cada linha do texto com seus dedos negros, pintados de esmalte
vermelho, chamado por ela de “encarnado”. Morávamos numa casa que tinha um
quintal de terra, com um pé de mamão, jabutis e areia. Como são férteis os
quintais na infância de uma criança!
Lembro da vez em que achei uma pá e resolvi cavar,
obstinadamente, na busca desenfreada por um tesouro que julgava estar escondido
debaixo da terra. Cavei fundo com a alegria de uma meninice saudável, sem ainda
saber que a preciosidade estava guardada, mas em minha mente infantil, repleta
de devaneios.
Na adolescência, mergulhando no universo drummondiano,
encontrei meu espelho em tantos poemas. A melancolia encolhida na alma, a
acidez diante do lado indigesto da existência, o erotismo, o tédio avulso nos
bolsos das calças, um niilismo que sussurrava baixinho dentro de mim. Depois
vieram outros que gritavam alto na alma: Pessoa e seu desassossego;
Neruda, para confeccionar romances e tantos outros em prosa e verso. No quarto
de papai e mamãe, ambos professores de Português, escutávamos eu e meus irmãos,
os dois conversando sobre construções verbais, desafinando em alguns pontos de
vista sobre regência verbal, fazendo cara feia quando cometíamos erros graves
ao falar e assim crescíamos, convivendo em meio a provas de redação, trabalhos
de alunos e livros didáticos.
O privilégio de poder ter em casa os clássicos da Literatura
Brasileira, e de outros países, me fazia ler precocemente muitas obras
fundamentais ao meu ofício. Sorvi boas safras de livros em prosa e, sobretudo,
em poesia. Até tentei alguns versos tolos, tristes, esporádicos. Depois,
descobri que podia ser poeta adotando um modo especial de enxergar a
vida. Mas escolhi a palavra como ferramenta da minha sobrevivência,
equilibrando-me no fio que separa a beleza poética da vida e a rigidez dos
fatos jornalísticos. Meus dois irmãos optaram por caminhos opostos e preferiram
ter menos problemas na cabeça, desvendando o mundo lógico dos números, equações
e algoritmos: Sérgio Alexandre é contador e a caçula, Alessandra, é analista de
sistemas. A única que não nasceu normal fui eu.
A leitura alimenta a alma, fornece o vigor e a densidade
necessária para mergulhos mais profundos nas questões existenciais. É bem
verdade que não se proliferariam tantas caraminholas na minha mente saliente.
Mas jamais conseguiria viver repetindo os mesmos refrões dos miquinhos
amestrados da obviedade social e nem mascando o tédio de uma existência
superficial.
* Texto escrito em 2009, após a leitura de
O Reizinho Mandão para minha sobrinha Luísa Valente Melo de Figueiredo, que
hoje se tornou uma pequena devorada de livros!