sexta-feira, 24 de julho de 2009

Lição de Casa


Meu pai me criou com as mãos sujas de giz. Engenheiro da sintaxe, calculava orações, reprovava as concordâncias erradas, media vírgulas no espaço adequado. Nunca chegou a pedreiro da construção verbal, embora o teria sido facilmente com sua letra feminina, acarinhando palavras e colocando nas folhas de papel em branco, sobre a mesa de jantar, todas aquelas delícias literárias que Barthes devassou em O Prazer do Texto. 

Os escaninhos da minha memória afetiva guardam os bolsos de suas camisas manchadas de tinta de caneta esferográfica, geralmente da marca Parker. Aos 7 anos, ele me convocava, solene, para ouvir sua interpretação de Pedro Pedreiro, O que será (À flor da pele) e outras arquiteturas poéticas buarquianas que desafiavam a gravidade da minha tão recente existência.


Na sala, aos sábados, após o meu ritual preferido das compras com ele e mamãe na Mercearia Lusitana (que, embora todos os azulejos portugueses no casario colonial de São Luís, foi para mim a mais forte referência sentimental deixada pelos portugueses no Maranhão), costumávamos ficar juntos, ouvindo na radiola músicas de Chico Buarque ou Milton Nascimento: ele com sua cervejinha e eu embriagada daquela explicação sobre as construções poéticas das letras do sobrinho de Aurélio Buarque de Holanda. Durante a noite, aos finais de semana, a agulha Schure deslizava suavemente sobre discos de músicas francesas, intercaladas (nada caladas!) por gemidos de J’taime, Mon amour! que embalavam o namoro entre ele e minha mãe no sofá, longe dos nossos olhos já cerrados pelo sono tranquilo de uma infância feliz. Cresci com um pai que oscilava entre ser, por vezes um Nelson Rodrigues, por outras um épico Gonçalves Dias. Ou que parecia verbalizar, conservador como um capítulo do Velho Testamento, e em outras ocasiões, como um livro safado de Adelaide Carraro, com suas frases irreverentes a desarrumarem o ambiente clássico de família, conservado pela dedicação da minha mãe.

Estavam sempre lá, depois do almoço, ele na rede e mamãe na cama, ambos discutindo questões gramaticais ou corrigindo provas. Dele herdei a paixão pelas canetas e a devoção pela Última Flor do Lácio. Como não amá-la, venerá-la, inculta e bela, minha Língua Pátria? Meu pai é o professor Botão, autor de escritos como "A Oração e seus termos", estudos sobre a carnavalização na obra O Alienista, de Machado de Assis e de “Amor, elemento irônico na obra de Proust”. Por questão de dois dias, teria nascido no Dia do Professor, sacerdócio ao qual ele se dedicou, durante décadas. Meu pai, Alexandre, que basta ter sido Grande para mim. Uma imensidão de gente. O ranger de sua inseparável rede vai me acompanhar por toda a minha vida.









terça-feira, 21 de julho de 2009

Estelionato afetivo


Só quem já foi vítima de um estelionato afetivo sabe a amplitude da frase da escritora tcheca Monika Zgustova: “Portar máscaras durante longo tempo estraga a pele.” A questão, que envolve vítima e carrasco, presa e caçador, no terreno escorregadio de certas relações afetivas, também desmascara o baile do enredamento emocional. No entanto, na maioria das vezes, tanto o algoz quanto o suposto vitimado utilizam máscaras para esconder suas deformidades, variando entre compulsões, carências, déficit de auto estima, inflamação do ego, neuroses variadas e até psicoses. Provavelmente, a confusão começa com a ideia de que o desejo precisa ser algo fugidio, escorregadio, obscuro, inalcançável, representado no mito de Eros que só se realiza na escuridão da metáfora de um quarto e, após a vela ser acesa, desaparece consolidando sua própria natureza oculta.
Para alguns, o estelionato ao qual me refiro, esconde-se sob o falso manto da sedução que não se deixa revelar totalmente – quando, de fato, o que não é mostrado nesse jogo é sua verdadeira face e a contravenção de se alojar no ambiente ambíguo da linguagem, ou um lugar de fala, conforme convencionou classificar Barthes. Em Fragmentos de um discurso amoroso, o genial intelectual constrói enunciações em uma obra que estabelece “o lugar de alguém que fala de si mesmo, apaixonadamente, diante do outro (o objeto amado) que não fala”. Uma variedade formidável de ciladas são descobertas na leitura, como por exemplo, a de que o outro está destinado a um habitat superior no Olimpo, no capítulo sobre Dependência e a elementar constatação no capítulo Por quê?: “Ao mesmo tempo em que se pergunta, obsessivamente, porque não é amado, o sujeito apaixonado vive na crença de que, na verdade, o objeto amado o ama, mas não o diz”.
Acrescenta-se a essa filosofia fast food a voz rouca de Tom Jobim cantando Lígia, um clássico da contradição amorosa, em que mentiras e verdades dançam como bailarinas vendadas diante de olhos cegos, revelando-se em mágoa, no ato final, com a conversão: “Fiz um samba canção com as mentiras de amor que aprendi com você”.
Passei algum tempo atrás ouvindo um mantra de Dadá Coelho, jornalista que sobrevive de humor (que nos resta, senão rir da palhaçada que é o comportamento de boa parte da imprensa no Brasil?): “quem ama, viabiliza!”, “quem ama viabiliza!”. Às ouvintes desta rádio, que escrevem pedindo conselhos, só conheço um: para desligar de alguém, é preciso ter a certeza de que o Amor é como o slogan daquela operadora de telefonia móvel: Simples assim! Sintomas mais fortes ou menos intensos do que a cumplicidade, a ternura apaixonada, a alegre convivência entre desejo e admiração, mulherada, são assuntos para serem tratados em divã!

Projeto Infinito




Sim, eu tenho desejos maiores. Acredito na Força Suprema do Universo, creio que a existência possui uma finalidade superior, abomino a idéia simplista de que meu destino final aqui na Terra é o de servir para alimentar vermos no caixão. Essa é a oração a qual recorro agora, como filha pródiga que cai muitas vezes no fogo e muitas vezes na água. No livro Mosca Azul, guardei comigo a sabedoria poética de Frei Betto, quando ele escreve: “o júbilo do coração quase sempre paga tributo se ainda não descobrimos os vôos do espírito”. Quero o alçar os vôos do espírito e apreciar as paisagens que não podem ser vistas em alguns lugares baixos que ainda costumo visitar dentro de mim. Quero adotar como princípio pessoal, a assertiva da pintora Frida Khalo: Pés, para que servem? Se tenho asas para voar! Já paguei meus tributos por não realizar os vôos do meu espírito. Como o deus Hermes, tenho asas nos pés.
A crise de fragmentação que atinge a humanidade é resultado da insistência em permanecermos atados às nossas ilusões, aos nossos caprichos, aos nossos quereres (que estão sempre ocultando outros quereres), aos nossos medos e covardias. No livro A Arte de Conhecer a si mesmo, o filósofo Shoppenhauer considera que deveríamos “querer o menos possível e conhecer o mais possível”. Operamos em nós uma perniciosa cisão entre diversos desejos, vontades e, ao invés de nos multiplicarmos, nos fracionamos em pessoas e situações, nos fragmentando sem ampliarmos nossas percepções para a inteireza do nosso ser.
Formidável estudiosa da poítiica, da filosofia, da educação do século XX, Hanna Arendt considerou: “A condição humana compreende algo mais que as condições nas quais a vida foi dada ao homem”. A vida sempre nos impõe o algo a mais do que as condições em que vivemos, os desafios que nos são impostos na vida emocional, na vida material, na convivência com o outro. As "crises do sentido da vida", certos vazios existenciais que nos visitam vez por outra é a existência que começa a requerer um sentido maior (além do puramente material). Judeu como Hanna Arent, um dos maiores gênios da humanidade, o físico Albert Einstein certa vez mencionou a beleza da nossa natureza, afirmando: “Minha condição humana me fascina”. Em um diálogo afim, Leonardo Boff considera: “O ser humano é um projeto infinito” – explicando que “nos recusamos a aceitar a realidade que nos cerca porque somos mais, nos sentimos maiores do que tudo o que nos cerca”. Einstein, Hanna Arendt, Boff: todos enxergaram a imensidão do nosso ser. Recuso-me a exercer a mendicância voluntária a que nos submetemos, com frequência, diante da superficialidade e da artificalidade dos fatos e episódios, quero mais do que catar migalhas das sobras de um quintal pessoal que não preenche a imensidão do meu ser. Como Frida Khalo, tenho asas. E, de cima, a paisagem é um deslumbramento ótico.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Jornalismo para a vida


Na gaveta de meus projetos e sonhos, que contam com a elasticidade desta existência para viabilizá-los, está a crônica Os Jornais, de Rubem Braga, com a frase que alicerça meu ideal futuro: “Os jornais noticiam, tudo, menos uma coisa tão banal de que ninguém se lembra: a vida”.
Há quase uma década, tenho me dedicado, de modo apaixonado, a buscar conexões interdisciplinares, entre áreas do conhecimento que evoquem a sacralidade da vida, em seus mais diferentes aspectos, envolvendo temas como: a dignidade, o acesso aos direitos que legitimam a cidadania, a espiritualidade, a afetividade, a humanidade e afins. Como tantos, optei pelo jornalismo pelas mesmas razões românticas daqueles que acreditavam na função social que a atividade jornalística possuía. Do romantismo universitário passei a viver uma paixão não correspondida, nas primeiras experiências práticas, até momentos de enorme desprazer que a promiscuidade entre o Departamento Comercial e o Departamento Jornalístico das redações e emissoras de rádio e TV adotavam como prática cotidiana. Confesso ainda: a sensação de ter sido a primeira mulher no Estado a ocupar o cargo de Secretária de Comunicação, em um estado como o Maranhão, se assemelhava, muitas vezes, a de quem é estuprada, diariamente, por razões cujos motivos comentarei um dia, de modo mais detalhado.
Fiel ao bom e velho ditado de que “mais vale acender uma vela do que amaldiçoar a escuridão”, defendo a proposta de que a informação deveria se converter em solução para os problemas sociais. A constatação de que existe uma abordagem reducionista no modelo de jornalismo praticado pela atualidade ratifica a noção de que o modo de informar, quando não caracteriza a notícia como um produto a mais no mercado, transforma-se em moeda política, largamente utilizada em nosso País, para a compra de consciências lesadas pela falta de Educação, Saúde, Saneamento Básico e outros direitos e garantias fundamentais.
A enorme lacuna deixada pela Mídia é consequência da forma limitada de exploração dos fatos, em sua maioria, gerados pela ausência de um Desenvolvimento Humano Integral. Há uma enorme variedade de questões e subtemas ocultos em cada matéria jornalística sobre homicídios, chacinas, surtos de doenças, catástrofes ecológicas e outros, inclusos nos pacotes de problemas da atualidade.
Como educomunicadora, também faço a defesa inarredável de que a forma de noticiar necessita contribuir para a formação de uma consciência em favor da justiça social e da vida, com a conversão necessária de temas da chamada antigamente de Grande Imprensa em debates e possíveis soluções para os problemas da atualidade, que poderiam estar anexadas a cada notícia. Acredito na possibilidade de contribuição, por meio da reflexão e análise do noticiário, para a formação de uma consciência cidadã, solidária, voltada aos direitos humanos, à ecologia social e à vida. Em suma, é possível transformar informações em commodity para elaboração de projetos e soluções aos problemas sociais do País. Ou ainda, conforme a precisão do enunciado do professor Edvaldo Pereira Lima, Doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), “um jornalismo de transformação. Que trabalha em prol da transformação individual e coletiva.” Para reforço da minha utopia realizável e de todos aqueles que acreditam que uma outra comunicação é possível, transcrevo suas palavras:

“...advogo para a narrativa jornalística de qualidade uma outra atitude. A postura proativa. O jornalismo aberto a esses novos caminhos em que percebemos a realidade não mais sob uma ótica reduzida, centrada apenas num patamar excludentemente racionalista em excesso. Um jornalismo que não fica à mercê do relato passivo dos acontecimentos, mas que percebe o eclodir de tendências e probabilidades, que acompanha a gestação de visões inovadoras, que sai do lugar comum. Que focaliza uma visão complexa, buscando uma compreensão ampla, ajudando o ser humano a encontrar novos significados, auxiliando-o a ampliar seu grau de consciência de si mesmo, do outro, da existência (...)“

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Cinzel do meu eu


Tenho o hábito atávico de manejar as palavras, cavando traduções absurdamente exatas para o inapreensível que habita em mim. Uma mania de resumir em títulos a verborragia tresloucada, desorganizada que compõe meu tecido íntimo. Ultimamente, ando me desenhando assim: sinto hemorragias de flávias em mim... orgasmos em minhas circunvoluções cerebrais. O momento de fertilidade acentua ainda mais essa busca, que consiste em tarefa semelhante à realizada pelo cinzel, em que estão obrigatoriamente incluídos exercícios sentimentais, questões relacionadas ao revolver de mim mesma, tendo como princípio norteador a certeza da finalidade superior da existência. No entanto, essa certeza é uma ilha cercada de dúvidas, cada vez menos atormentadoras para mim, mas que fortalecem minha musculatura emocional e impulsionam meu caminhar. Com uma nesga psicanalítica, nestas minhas incursões, adoto o que propõe o antropólogo Clifford Geertz: “se você não sabe a resposta, discute a pergunta”.
Aos abstêmios que sofrem do fígado, aos que incluem o mau humor em suas necessidades fisiológicas diárias, essa exposição crua de mim mesma pode parecer repleta de pinceladas de devaneio nascisístico. Com fobia de holofotes, considero tal mania um modo peculiar de me dizer, uma maneira de me encarafunchar - coisas de quem, frequentemente, prefere habitar as próprias cavernas, abrir as gavetas dos porões da alma. Sou uma buscadora, já disse. A busca é, por vezes, dolorosa, outras, deliciosa! Os excessos exteriores não me bastam. Nem a alegria pasteurizada dos macaquinhos amestrados, os sorrisos macdonaldizados, muito menos o açougue do sexo banal da contemporaneidade descartável.
Lá fora, é cada vez mais crescente a imbecilização epidêmica dos empanturrados por uma felicidade fraudulenta indigesta. Há alguns meses, traduzi um episódio pessoal desta forma: ALMA NUA: PROIBIDA PARA MENORES DE ESPÍRITO. A prática desse tipo de nudismo faz bem a mim. Nele, não cabe a deselegância dos que se vestem de trajes variados para cobrir suas vergonhas e seus medos. Prefiro dedicar horas silenciosas às palavras do meu quintal a ter que comprar ingresso para o Baile de Máscaras da atualidade!












segunda-feira, 6 de julho de 2009

Bicho da seda


Costumava subir, diariamente, a Brigadeiro Luiz Antônio, em São Paulo, quando certo dia um dos meus amigos mendigos disse: “Onde vai assim tão linda?”. Nossa amizade surgiu da troca de olhares, de certos sorrisos cúmplices entre nós, que transcendiam a linguagem desnecessária dos dias rígidos, subvertendo a pressa paulistana que atropela a paisagem humana. Lembrei de um dos poetas da minha devoção, Manoel de Barros, que cita “parafusos de veludo” e “alicates cremosos”. Repeti o mantra Drummondiano: “uma flor furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”. Essas pequenezas se traduzem no tema que há tempos venho me dedicando a estudar, perceber e vivenciar: o afeto.
Este que é mais um, entre tantos de meus devaneios necessários, nasce de ternuras recentes e de uma saudade que queria ter o poder de se transmutar em texto. Escrevo pensando no olhar sereno de alguém que tem nome de homem e mulher, dono de uma ternura forte e uma virilidade meiga, José de Paula, meu avô Bezerra, de 94 anos. Ouço os risinhos musicais de minhas princesinhas Maria Clara e Luísa Valente, sinto em mim a força do amor-alicerce de Alexandre Botão e Elenice, ambos com suas letrinhas redondas, protetoras, os cuidados e carinhos que a falta da infância não me roubou, de Jane, Graça e Terezinha. Escuto a gargalhada sacana de Fufu, que nunca vou deixar silenciar. E penso naqueles que chegaram para ficar, fizeram-se maiores que o instante miúdo e não foram devorados pelas coisas desagradáveis. Saudades, ternuras sagradas que me unem ao humor de Dadá, ao xamanismo de Carlos Henrique, ao meu Lexotan de lucidez, Alice do País das Mara... cutaias, ao caso de amor de Viviane de Araújo e Carime Jadão com a Vida, que me ensinaram tanto sobre esse tema... e de tantas outros que ainda hão de passear aqui pelas linhas desse blog.
A ternura nos oferece a chance de aprender com a delicadeza dos pequenos gestos, de furtar sorrisos de estranhos, deliciar-se com olhares de seda. O afeto é fogo, diz Gil, como um queimar que desce ladeira abaixo da nossa arrogância burra, como lágrimas que invadem territórios áridos diante das conversa de Caetano, Bethânia e dona Canô, em ‘Pedrinha de Aruanda’ ou de ‘Santiago’, chamando João Moreira Salles de Joãozinho, filmes que amoleceram ainda mais meu coração de geléia. No livro A Onda que se Ergueu do Mar, Ruy Castro registrou uma frase linda de Tom Jobim: “Eu sou um aprendiz de ternuras”. Guevara revolucionou o mundo ao se enternecer com as lepras da América Latina, pedindo que se endurecessem sem perder a ternura jamais. O profeta Gentileza morreu propondo ao mundo a formação de uma consciência gentil. Nesses tempos tortos de violência pandêmica, barbáries em série, de uma modernidade de plástico descartável, quem elege um tema destes para escrever acaba sendo tachado de louco ou pueril, como Gentileza, Gandhi e como Aquele que ousou andar descalço e cabeludo falando de amor em meio a prostitutas e ladrões. Os desavisados não percebem que, diante do caótico quadro de anemia afetiva, a ternura deixa de ser tema de romances açucarados e passa a se converter na única possibilidade de libertação da nossa miséria afetiva. Conforme assinala Rolando Toro, poeta e antropólogo chileno, criador da Biodança:

"Não basta libertar o homem de sua miséria econômica.É necessário também libertá-lo de sua miséria afetiva,de sua pobreza criativa e de sua incapacidadede desfrutar o prazer de viver."




O exercício de bastar-se



Vivi, em 2007, a experiência de fazer meu próprio Caminho de Santiago no Brasil. Dez anos antes, recebia o Prêmio Nobel de Literatura, a escritora Doris Lessing, por quem me deslumbrei ao ler, em entrevista ao Jornal do Brasil: “a solidão é um grande luxo”. Ao sair de uma árdua experiência profissional e pessoal, escolhi o luxuoso prazer de ficar só com meus inúmeros amigos interiores, um alento que admito existir na misantropia voluntária a que, frequentemente me submeto. Drummond, misantropo, tímido e escorpiano, como eu, dizia: “a solidão gera inúmeros companheiros em mim mesmo”.
Escolhi uma cidade que, embora frenética e barulhenta, me fazia há algum tempo ouvir os sons do meu silêncio. Uma metrópole trituradora, moedora, mas que havia me feito, há alguns anos, descobrir a inteireza do meu ser: São Paulo, lugar perfeito para o meu exílio intelectual. Rasguei meu cartão de visitas e fui tentar uma vaga na USP. Aprovada em segundo lugar na seleção de uma pós-graduação na Escola de Comunicações e Artes (ECA), voltei a calçar tênis, usar mochila nas costas e passei a aguardar, resignadamente, durante uma hora ou mais, o trajeto do ônibus que, bravio, atravessava a tempestade de carros de uma cidade, cuja quantidade de automóveis correspondia ao total da população do meu Estado.
O frio e a cinza paulista faziam afagos na minha solidão necessária - uma velha conhecida minha das fases de preguiça social e da infância franzina em que tantas vezes me sentia como uma mistura de Quasímodo e Dom Casmurro. Durante muitos finais de semana, as únicas vozes no apartamento em que vivia eram do rádio e da televisão, que faziam companhia para a voz estridente dos meus pensamentos. Li, compulsivamente, entusiadamente, Shopenhauer para combinar com o momento, alguns clássicos que adiei durante décadas, Foucault e Barthes, com os quais vivi um triângulo amoroso, além do tórrido caso de amor que mantenho até hoje com as descobertas que a USP me proporcionou: Jesús Martin-Barbero, Nestor Cancline, Clifford Geertz, Stuar Hall, Manuel Castells, Jorge Huego e os outros estudiosos da Educomunicação. Cafés, livros, filmes e terapia me bastavam. Como na fórmula barthesiana: “nada de poder, um pouquinho de saber e o máximo possível de sabor”.
Cheguei até a comprar um girassol, batizado por mim de Soledade. Regava e conversava com Soledade que, insistentemente, buscava nutrir-se dos mínimos raios de sol, entre as frestas dos prédios aglomerados diante da minha sacada. Meses se passavam e ela sobrevivia, na incrível instabilidade climática paulistana. No inverno, Soledade não tinha mais forças e morreu. Voltei para São Luís e quase dois anos depois, só agora o sol começa a brilhar. Agora, faço desta a minha homenagem a Soledade, que me ensinou a insistir em viver, mesmo quando aquilo que nos nutre no momento seja insuficiente.

domingo, 5 de julho de 2009

A falência do circo


“A maior parte da dinâmica dos relacionamentos não comporta a verdade”, leio, estarrecida, em meu signo, na seção de horóscopo de O Estado de São Paulo. Mercúrio e Plutão em oposição? Pouco me importa. Divirto-me aqui na platéia e deixo o palco para os exibicionismos daqueles que crêem, firmemente, no triunfo da dissimulação, para os que têm fé na descrença, aos apreciadores de grandes espetáculos com direito a cortina de fumaça na estréia e em todos os atos. Fumaças e escuridão: toda boate tem um fundo de verdade!, canta, com habitual irreverência, Ana Carolina.
Da página de horóscopo (adoro oscilar entre os extremos!) pulo para a reportagem com o escritor argelino Grégoire Bouillier e seu livro sobre o conturbado caso com a artista Sophie Calle, de quem se separou por e-mail, recebendo como resposta diversos vídeos com mensagens que interpretavam o rompimento por meio de performances. Em meio à ruidosa era de discursos eletrônicos, e-mails, torpedos, SMS, twitters, blogs, nada mais atual aos adeptos do estilo fake do que ser virtual e não real! Maria Aparecida Baccega, da Escola Superior de Propaganda e Marketing e livre-docente da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, interpretou, com argúcia, o fenômeno e seu alargamento para o território comportamental: “Palavras tomam lugares em discursos de máscaras. A linguagem então assume o papel de mercadoria. é a sociedade das aparências”.
A fórmula é fácil. Inclui embalar conversas em um papel vistoso (quem sabe não estaria aí a origem da expressão 'papo furado'?), jogar para debaixo do tapete as dores e decepções sem a necessária auto-investigação, substituir sentimentos que exigem crescimento pessoal por emoçõezinhas baratas e converter delicadeza em vulgaridade. Na arena dos discursos de máscaras é mais forte quem sabe mentir. E na lógica perversa dos marqueteiros da felicidade modelo revista Caras (e de seus bilhetes de viagens, fotos que tentam estancar o tempo e lua-de-mel com vista para o mar) amar é um ato de ingenuidade.
A série de vídeos que traduziram a mensagem de rompimento de Bouillier a Sophie Calle foi exibida na Bienal de Veneza de 2007. Entre performers, atrizes e bailarinas, havia uma palhaça. Do lado de fora do enquadramento do vídeo, o circo faliu. A palhaça, sem mais função, resolveu aprender a ser trapezista.