sábado, 27 de junho de 2009

Fio de Ariadne



Ainda sob efeito de uma pressão que resolveu brincar de alpinista, aproveito as tonturas físicas para elaborações existenciais em torno das sucessivas voltas que damos em torno das velhas e recorrentes questões subjetivas. Tratar destas questiúnculas, em meio à enxurrada de informações de maior relevo para os que cultuam o exterior, é uma maneira solitária de descer um degrau a mais nos porões da minha alma. Desprovida do talento de uma sábia milenar, com quem troco textos e dicas literários, ouso navegar calmamente no meio da imensidão de um oceano revolto de palavras.
Em minha farmácia de frases, absorvo em doses homeopáticas a afirmação do orador e político grego Demóstenes (384 a 322 a.c.): “é extremamente fácil enganar a si mesmo, pois geralmente o homem acredita naquilo que deseja”. Os que padecem de profundas ulcerações emocionais, inquietações atávicas, intensidades dos quereres, das buscas desenfreadas e de outras enfermidades do gênero, desconhecem o quanto é fácil enganar a si mesmo. A sinuosidade da alma feminina, dada a teceduras sentimentais, é presa fácil das alegorias que se travestem de pequenas alegrias, das miragens em sofisticadas roupagens, dos simulacros de visibilidade estéril. As lacunas que surgem no decorrer da caminhada vão revestindo e despindo as procuras, oscilando ora em encontros, ora em desencontros. Movida pela frequente busca renovadora, pela resignificação transformadora, adoto a formulação lacaniana de que o desejo é sempre o desejo de um outro desejo.
O conflito entre o ardor interior de quem se alimenta de buscas frenéticas e a mania feminina de confeccionar sentimentalidades é assunto para muitas horas de divã. No entanto, reflexiono em torno da quase em extinção característica das tecelãs que ainda acreditam na possibilidade de realização da grandeza de um projeto afetivo. Muitas usaram do recurso ao qual me refiro. Sherazade, arquétipo da estranha relação entre amor e morte, desenrola seu novelo de histórias para o Sultão, escapa de ser decapitada e vive sob a proteção de uma sedução que dura mil e uma noites. Penélope, para aguardar Ulisses (ou Odisseu) que guerreava em altos mares utilizou um artifício parecido. Para não desagradar o pai, que sugeriu que ela se casasse novamente, resolveu aceitar a corte dos pretendentes com uma condição: casaria somente após terminar de tecer uma colcha. Trabalhava de dia e desfazia a costura de noite para que as vestes nunca ficassem prontas. Ulisses regressou à sua Ítaca natal 20 anos mais tarde.
O mito de Ariadne, porém, é o mais intrigante de todos. Uma metáfora geralmente usada para descrever a solução de um problema. Filha do rei Minos, se apaixona por Teseu, pede a Dédalo, arquiteto do palácio onde viva o Minotauro a
planta do local. Após conhecer o lugar, dá um novelo a Teseu, recomendando que o desenrolasse a medida que ele entrasse no labirinto para encontrar a saída. Teseu usou essa estratégia: matou o Minotauro e, com a ajuda do fio de Ariadne, encontrou o caminho de volta. Retornando a Atenas levou consigo a princesa. Mas, depois de uma noite de amor, deixou-a na ilha de Naxos e ela nunca mais viu Teseu. Belíssimo roteiro de drama e lição para quem, ao desenovelar ou dedicar tempo precioso à arte de tecer, surpreende-se com o final.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Delírios e delícias de palavrar




No curso Diálogos entre o texto jornalístico e o texto literário, promovido no início de junho passado, em São Paulo, no Espaço Cult, o jornalista Xico Sá aconselhou a uma comportada platéia a acrescentar uma dose de passionalidade em seus escritos: “paixão e um pouco de delírio também”, receitou. Delírio? Para os obsessivos pelo culto às palavras é quase uma impossibilidade a tentativa vã drummondiana de manter-se uma relação sã e superficial com aquelas que nos desenham a existência ao redor.
O poeta Pessoa, que assumia seu gosto em palavrar, mencionou as propriedades terapêuticas da escrita, quando registrou: “se escrevo o que sinto é porque assim diminuo em mim a febre de sentir”. O Livro do Desassossego não poderia ter efeito mais devastador em mim, na época em que o li. Nele encontrei os sintomas tão frequentes desde a infância, resultantes da sinuosidade da minha alma frenética, inquieta, ardida, repleta de formigas no espírito. Anos atrás, li em o Jornal do Brasil uma entrevista com a escritora Nélida Piñon, que admitia: “escrevo para o meu desassossego”. Palavra que acalma e alarma. Como seria se os médicos fossem viciados em formol? "Somos uns doentes", pensei. O poeta Mário Quintana chegou a confessar que sua poesia sofria de “uma inquietação terrível”, segundo ele, como a música de Mahler.
Por uma transcendência poética que impregna o ofício de quem escreve, confesso-me atormentada pela delirante aventura de escrever, de prestar atenção no mistério que reside escondido entre uma palavra e outra, no silêncio de tantas palavras, na eloquência de algumas e na tagarelice dos termos desnecessários. De quantos delírios noturnos não sofri, ao espremer pequenas expressões cotidianas na inútil tentativa significativa? Quantas vezes não descobri longos discursos ocultados em uma única palavra?!... E quão frustrante não foram os momentos em que percebi o esvaziamento das emoções mais nobres em certas frases banalizadas por palavras dissimuladas que roubam de si mesmas toda a riqueza semântica. Cheguei a escrever a alguém: o que resta de nós agora é a nobreza do silêncio.
A intimidade com as palavras costuma fornecer uma fina ironia, nos moldes machadianos dada a poucos com sua porção de refinamento essencial. Mais cômica do que irônica, cínica talvez, fiz certa vez, ainda estudante do curso de Comunicação Social, em meio a aula de Semiologia, um poeminha gaiato: “palavra com palavra, letrinha e letrinha, farei o dicionário do nosso amor analfabeto”. Um caldo feito das sobras de Barthes e Saussure. E, embora, todas as delícias do delírio de palavrar, não me iludo e repito o salmo de Drummond: “Lutar com palavras é a luta mais vã”. Sugiro um download da música Tantas Palavras, de Chico Buarque: ”...Trocamos confissões no cinema, dublando as paixões, movendo as bocas, com palavras roucas, fora de si...”



GráVIDA de mim


Um cheiro forte de mato exala da minha alma de água, agora em forma de cachoeira. Basta um abraço no céu e a vida entra pela boca. A poesia se derrama pelo chão de flores, onde descalços os meus amores vão passar. Eles chegam, carregados pelo tempo, disfarçados de acaso e lambuzados de mel.
O sábio Arquiteto do Universo fez borboletas multicores, o formato caudaloso dos rios, temperou a água do mar com o sal da terra, forrou o teto do mundo de azul e branco, tilintou o céu de estrelas brilhantes, incandescentes e preparou o cenário para nos contar como é fascinante o espetáculo da vida. O mago das palavras, Guimarães Rosa, ensinou que o mundo é mágico e as pessoas não morrem, ficam encantadas. Rubem Alves, mestre da crônica existencial, não conseguiu conter o êxtase diante daquilo sobre o que me atrevo a escrever e proclamou: “Deus tem que existir. Tem beleza demais no Universo”. Osho também segredou sobre a intenção divina de colocar cores no mundo, como forma de nos mostrar que se quisesse tristeza por aqui faria a nossa morada da cor cinza. Diante da generosidade da vida, o antropólogo chileno, poeta e criador da Biodança, Rolando Toro, propõe “viver abundantemente”. Gonzaguinha, que se despediu, precocemente, desta para a outra dimensão, devia desconfiar que tinha pouco tempo por aqui e compôs uma declaração de amor à existência: “Há quem fale que é um divino mistério profundo, é o sopro do criador, numa atitude repleta de amor”. E convoca à revolução de “viver e não ter a vergonha de ser feliz”. Maravilhado, com o que chamou de Maravida, o filho de Gonzagão exclama: “...Quero meu peito repleto de tudo o que eu possa abraçar.” Abraços quentes, risinhos incontidos, ternuras múltiplas, os suaves prazeres do cotidiano e a matéria-prima fundamental da existência: gente.
Como Cazuza, em Blues da Piedade, vamos pedir piedade aos ressentidos, aos inchados de mágoa, aos que inflamam suas veias de ira e grosseria, aos que não se rendem à delicadeza do afeto, aos que foram convidados para a ceia do Senhor, mas perderam a chance de saborear a existência. Delícia é viver.